Trecho do conto Brokeback Mountain

Brokeback Mountain - Annie Proulx - 1997 (The New Yorker)

Ennis del Mar acorda antes das cinco, o vento balançando o reboque, assobiando no alumínio da porta e dos marcos das janelas. As camisas dependuradas num prego tremem um pouco na corrente de ar. Ele se levanta, coçando a área cinzenta de barriga e pêlos pubianos, vai arrastando os pés até o fogareiro a gás, passa o café velho para uma panela de esmalte lascada que o azul da chama envolve. Abre a torneira e urina na pia, veste a camisa e o jeans, calça as botas surradas, batendo o salto no chão para calçá-las até o fim. O vento ressoa com estrondo ao passar ao longo do reboque abaulado, mas assim mesmo ele ouve o atrito do cascalho .no e da areia. Podia ser complicado na estrada com o reboque dos cavalos. Ele precisa ter tudo embalado e estar longe dali naquela manhã. A fazenda está de novo no mercado e já embarcaram o restante dos cavalos, pagaram todo mundo na véspera, o proprietário dizendo: "Pode dar os bichos para o tubarão das terras, vou embora daqui", deixando cair as chaves na mão de Ennis. Talvez ele tenha que .car com a .lha casada até arranjar outro emprego, mas está impregnado de uma sensação de prazer porque sonhou com Jack Twist.

O café velho começa a ferver e ele o apanha antes que transborde, serve-o numa xícara encardida e sopra o líquido preto, deixa um painel do sonho seguir adiante. Se não forçar a atenção nele, talvez esse sonho anime o dia, reaqueça aquela época fria muito tempo atrás na montanha quando eles eram donos do mundo e nada parecia errado. O vento bate no reboque como uma carga de lixo sendo despejada de um caminhão, amaina, morre, deixa um silêncio provisório.Eles foram criados em fazendas de gado pequenas e pobres em cantos opostos do estado. Jack Twist em Lightning Flat, na fronteira de Montana, Ennis del Mar era dos arredores de Sage, próximo à fronteira de Utah, ambos garotos do interior sem o ensino médio completo e sem perspectivas, preparados para dar duro e passar necessidade, ambos de modos e fala rudes, acostumados à vida estóica.

Ennis, criado pelos irmãos mais velhos depois que os pais pegaram o carro e desapareceram na única curva da Estrada Dead Horse, deixando-lhes vinte e quatro dólares em espécie e uma fazenda de gado com duas hipotecas, conseguiu tirar aos catorze anos uma carteira de motorista com direitos restritos que lhe permitia fazer a viagem de uma hora da fazenda até a escola de ensino médio. A picape era velha, sem calefação, com um só limpador de pára-brisa e pneus ruins; quando a transmissão quebrou, faltava dinheiro para mandar consertar. Ele queria ser aluno de segunda série, achava que a expressão carregava uma espécie de distinção, mas o carro quebrou um pouco antes disso, arremessando-o direto na lida das fazendas de gado.

Comentários

Mateus Denardin disse…
O conto não chega a ser tão arrebatador quanto o filme, meu favorito, mas é de uma crueza e ao mesmo tempo sensibilidade genuínas. Lindo.